A mim parece-me que fazes sempre algo completamente diferente. Onde vais buscar a inspiração?
Hum… Para dizer a verdade, não sei ao certo. Desculpa! (risos)
Há muitas pessoas que se autoavaliam e conseguem falar sobre si próprias, mas não há muita gente que consiga dizer que não faz ideia. (risos)
É verdade.
Mas falar contigo hoje deixou-me a nítida sensação de que tu és genuinamente assim. Incluindo a forma como fazes jogos refletindo sobre as tuas experiências quando tomas decisões e como esse processo continua a crescer.
Tenho a ajuda da sorte. Sou realmente uma pessoa abençoada, pelas pessoas e pelo ambiente à minha volta. Mesmo depois daquele problema com o Resident Evil 2, tive dificuldades com Viewtiful Joe e Okami29, e passei muito tempo em processos de tentativa e erro. Só fui capaz de encontrar as respostas corretas graças a esse ambiente.29. Okami: Um jogo de ação e aventura lançado no Japão pela Capcom em abril de 2006 e na Europa em fevereiro de 2007. Na altura, Kamiya-san esteve envolvido no desenvolvimento enquanto diretor da subsidiária da Capcom, Clover Studio Co., Ltd. A versão para a Wii foi lançada na Europa em junho de 2008.
O que tu sentes quando encontras a resposta certa depois de experimentares várias opções é: «Ah! É isto mesmo!»?
Sim. Nasci na província de Nagano e quis fazer um jogo revigorante que apaziguasse a alma. Mas se a ação se desenrolar na natureza, vai apetecer-te correr por ela, não é? Então, precisas de níveis enormes, o que reduz inevitavelmente a densidade dos conteúdos.
Não haveria limites.
Naquele instante, um dos membros da equipa desenhou o design de Amaterasu, a personagem principal, ao estilo da pintura japonesa a tinta-da-china com um efeito de pincel. Quando o vi, pareceu-me uma abordagem adequada fazer tudo ao estilo da arte japonesa.30. Amaterasu: A personagem principal de Okami. Amaterasu é a deusa do sol que se transforma num lobo branco.
Essa ideia apareceu mesmo no momento certo.
Representar a natureza ao estilo japonês era algo fora do comum e, por isso, muito revigorante. Depois, disse a (Atsushi) Inaba-san31, o produtor, que queria mudá-lo drasticamente e acabei por arriscar e fi-lo. Mas, mesmo depois disso, continuava sem conseguir decidir que tipo de jogo queria que fosse.31. Atsushi Inaba: Produtor, PlatinumGames Inc. Produziu The Wonderful 101, tendo-se tornado produtor depois de entrar para a Capcom como programador. Quando Okami estava a ser desenvolvido, Inaba-san era presidente e CEO da Clover Studio.
A direção visual estava a funcionar bem, mas isso não basta para fazer um jogo.
A meio do processo, tornou-se uma espécie de simulação e começámos a introduzir elementos, como criar campos e estradas ou construir casas, mas não era nada divertido. Passaram-se dias e dias e eu sem saber ao certo como o jogo deveria ser.
É o mesmo processo pelo qual passou Animal Crossing32. Demos muitas voltas em Animal Crossing, passámos por imensos processos de tentativa e erro até termos adotado o formato atual.32. Animal Crossing: Um jogo de comunicação lançado no Japão para a Nintendo 64 em abril de 2001. Posteriormente, o jogo foi lançado para a Nintendo GameCube na Europa em setembro de 2004.
Ai sim?
Parece tranquilizador, mas o desenvolvimento do primeiro foi bastante difícil. (risos)
Connosco passou-se exatamente a mesma coisa! (risos) Depois, um dia, Inaba-san já não conseguia ver mais nada, explodiu e perguntou o que tencionávamos fazer em relação àquele jogo. É claro que tínhamos andado a pensar no assunto até ali, mas tínhamos chegado a um impasse. Como aconteceu mesmo antes de um fim de semana prolongado, cerca de dez membros nucleares da equipa juntaram-se durante os três dias e concentraram-se nisso.
Foi uma espécie de pequeno retiro profissional.
Exato. No primeiro dia, o ambiente na sala de reuniões estava horrível. Não tivemos nem uma ideia boa.
Essas alturas podem ser bastante negras. O que te estava a preocupar em concreto?
O primeiro vídeo promocional que fizemos mostrava a personagem principal, Amaterasu, a correr num campo enquanto à sua volta brotavam plantas e árvores. Tínhamos em mente um jogo dinâmico e onírico. No centro estava a ideia de Amaterasu enquanto lobo e enquanto deusa, mas tivemos dificuldade em descortinar o que uma deusa deveria ser capaz de fazer.
Estou a ver.
Tudo mudou no segundo dia. De repente, alguém disse que uma deusa é capaz de fazer tudo, o que fazia perfeitamente sentido.
Ah! «O que é que uma deusa é capaz de fazer?» transformou-se em «Ela é capaz de fazer tudo.»
Isso mesmo. Além de fazer nascer plantas, a deusa é capaz de muito mais. Tive outra epifania nessa altura. Como a arte seguia o estilo das pinturas a tinta-da-china, disse: «Se desenhares uma árvore, aparece uma árvore. E se desenhasses a trajetória do vento e o vento soprasse?» O ambiente na sala de reunião mudou completamente. Toda a gente ficou entusiasmada, achando a ideia divertida, e acabámos por criar um plano de projeto antes de o dia chegar ao fim. Só tinha duas ou três páginas, mas era o bastante. Antes, quando ainda não sabíamos exatamente o que fazer, o plano tinha dezenas de páginas! (risos)
Como estavam preocupados, estavam sempre a acrescentar coisas. Mas os bons planos são breves, transmitem o âmago do jogo.
Isso mesmo. Mesmo sem explicações desnecessárias, um jogo desenrola-se naturalmente em torno do seu âmago. No terceiro dia, introduzimos conteúdos com base naquele plano. No início da semana seguinte, quando expliquei o ponto da situação à equipa, todos os rostos se iluminaram. Finalmente, tinha a certeza de que seria divertido. E fizemos de Okami o jogo que é hoje em dia.
Graças a Inaba-san ter-se enervado.
(risos) Inaba-san também gritou connosco e mandou-nos organizar as ideias para Viewtiful Joe. Toda a gente se juntou no fim de semana para refletir sobre o assunto e, como resultado, nasceu o sistema VFX Powers33.33. VFX Powers: Aptidões que permitem que os jogadores executem ações manipulando o espaço e o tempo.
A sério? Foi assim que surgiram?! Mas os VFX Powers são o âmago do jogo!
Pois, mas só passaram a existir naquela altura. Os meus jogos têm tendência a seguir esse caminho. O âmago não existe no plano desde o início. Fazemos o jogo com sorte e inspiração. E, se trabalharmos com afinco, a certa altura, o deus dos videojogos desce sobre nós.
Hum… mas o deus dos videojogos só aparece aos fins de semana, já em cima da hora.
Sim! (risos) Devia mesmo começar a pensar no assunto mais cedo.
Mas acho mesmo que tens uma capacidade impressionante de receber inspiração e de não abrir mão do que descobriste até ao momento crucial.
Talvez seja realmente assim se o fizeres de uma forma positiva. O Slow34 em Viewtiful Joe era exatamente assim. Um programador, que por acaso do destino estava sentado ao meu lado, estava a ver os movimentos e a mover Joe em câmara lenta.34. Slow: Um VFX Power em Viewtiful Joe. Tudo o que está no ecrã abranda, permitindo que o jogador faça explodir o inimigo em determinadas condições.
A sério? Isso também?!
O Slow surgiu porque eu disse ao programador: «Ei! O que estás a fazer?! Isso é fixe!» e obriguei-o a deixar-me experimentar.
Eu sabia. Tu tens jeito para agarrar esses estímulos importantes que surgem à tua volta.
Bem, isso é porque não vêm de dentro da minha cabeça! (risos) Acho que isso significa que The Wonderful 101 foi um caso raro no sentido em que o produto final ficou bastante semelhante à proposta original, com os nossos ajustes.
Sim. (risos) Apesar de não termos aprofundado muito o assunto, graças à nossa conversa cara a cara de hoje, fiquei com uma boa ideia das experiências que viveste e que te trouxeram até aqui. Foi muito interessante. Na segunda parte, quero perguntar-te tudo sobre The Wonderful 101. Muito obrigado.
Obrigado eu!
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