4. A maldição da música dos RPG

Iwata:

Então, o Sakaguchi-san queria que tu compusesses música com uma abordagem totalmente diferente do que tinhas feito antes. No que é que pensaste, ao abordar esta tarefa?

Uematsu:

Bom, a primeira coisa a dizer é que existe uma espécie de maldição ligada à música para RPG. Há pressupostos básicos sobre o que um jogo RPG deve ser. Para este título, pus tudo isso de parte e concentrei-me noutros aspetos, como os elementos usados em bandas sonoras de filmes e a textura da música. Claro que continuo a ser eu a criar música, por isso não há uma diferença enorme nas melodias, entre isto e o que fiz antes, mas o meu objetivo era criar música que fosse totalmente diferente do que pensei ser o padrão de música dos RPG.

Sakaguchi:

Creio que essa relação entre o RPG padrão e a música é bastante semelhante à música que ouvimos enquanto corremos. Por isso, se jogar um jogo for como correr, o objetivo da música é dar-nos uma sensação de ritmo.

Iwata:

Então queres dizer que a função da música num RPG é não atrapalhar enquanto corremos. Por outras palavras, deve ajudar o jogador enquanto joga.

Sakaguchi:

É verdade. Pelo contrário, a música no cinema tem tendência para ser um pouco mais emocional, cria um espaço onde o espetador pode ficar comovido. Como é criada para se enquadrar no conteúdo emotivo de cada cena, utiliza uma grande variedade de música diferente. Mas, com a música de batalha deste título, não sabemos o que vai acontecer, por isso a música não pode ser ligada integralmente à cena, como acontece com a música de um filme. Mas, dito isto, creio que conseguimos alcançar um efeito comparável.

Iwata:

O que considero curioso, Uematsu-san, é o facto de teres conseguido criar música que correspondia à visão do Sakaguchi-san para o jogo, apesar de teres ouvido apenas que o teu esforço inicial estava “todo mal”. Como é que lidaste com isso? Tiveste ideias próprias para alcançar os objetivos?

Uematsu:

O Sakaguchi-san disse algo há muito tempo e que nunca me saiu da cabeça. Discutíamos ideias para músicas, quando trabalhávamos em FFIII9, e ele pediu-me que pensasse em maneiras de usar a música para exprimir emoções no jogo em tempo real. Ainda me lembro disso distintamente. 9 Final Fantasy III foi um jogo RPG lançado no Japão, para a Famicom, em abril de 1990.

Iwata:

Então o que o Sakaguchi-san te disse há mais de duas décadas ficou contigo, e recordaste isso durante este projeto.

Uematsu:

Sim, penso que talvez seja verdade.

Iwata:

Deve ser bastante difícil criar algo completamente diferente num só mês, por isso deste por ti naquilo que pode ser descrito como uma situação extrema.

Sakaguchi:

Foi certamente difícil. Queria que a música tivesse esse elemento de tempo real, mas a última coisa que queria era perder as melodias do Uematsu-san. Sabia que não fazia sentido tentar encaixar canções em cenas emocionais do jogo. A dificuldade de expressar emoções através da música é um assunto com o qual lidamos há mais de 20 anos.

Iwata Asks
Uematsu:

Sem dúvida que é.

Sakaguchi:

Creio que, em última análise, não existe uma solução simples. Mas nós os dois falávamos de vez em quando de como a natureza dos videojogos nos permitia tentar certas soluções para esse problema, ao utilizar programação inteligente para alcançar o efeito desejado.

Iwata:

Compreendo. Então, apesar de não terem trocado e-mails durante um mês, o Uematsusan tinha uma espécie de diálogo com o Sakaguchi-san, na sua cabeça.

Uematsu:

Não estava a tentar compor canções de que o Sakaguchi-san gostasse, mas pensava constantemente em maneiras de criar algo que reforçasse a visão de jogo que ele tivera. E sabia que eu e o Sakaguchi-san gostávamos os dois de cinema, e de música também... Bom, penso que sabemos do que o outro gosta e não gosta. (risos)

Sakaguchi:

Estás a dizer que, para ti, sou um livro aberto? (risos)

Iwata:

Então estavas sempre a tentar encontrar maneiras de apoiar ou expandir a visão criativa do Sakaguchi-san. Agora que os ouço falar, parece que não se tratou apenas de trocar e-mails e conversar, parece que também houve um diálogo sobre gostos dentro das vossas cabeças.

Uematsu:

Além disso, quando algo é rejeitado e tem de ser refeito, é provável que o resultado final fique melhor do que o que tínhamos feito originalmente.

Iwata:

A rejeição é uma parte necessária do processo, se pensarmos no resultado final.

Sakaguchi:

Correndo o risco de parecer que me gabo, penso mesmo que a canção final de The Last Story é excecionalmente boa. (risos)

Uematsu:

É uma canção muito boa! (risos)

Sakaguchi:

O Uematsu-san também conseguiu encontrar uma ótima cantora.

Iwata:

Procuras sempre cantores que se enquadram na tua visão para uma canção particular?

Uematsu:

Bom, suponho que depende da natureza do jogo. Tenho de levar em consideração a visão que o diretor ou o compositor da letra têm para o mundo do jogo, além de fatores como a qualidade da voz. Depois disso, é preciso encontrar o cantor e descobrir se há algo que resulta.

Sakaguchi:

Há muitos fatores que interagem, para determinar se uma canção resulta ou não. Na canção final, penso que a gravação correu muito bem, com as notas de baixo que ficaram muito fortes. Escrevi a letra para esta canção e os versos são quase todos trauteados, só existe letra na última secção.

Uematsu:

Exato! Os versos não têm letra nenhuma! (risos)

Sakaguchi:

Estava um pouco preocupado com isso, por isso consultei-te, não foi?

Uematsu:

Isso apanhou-me de surpresa. Não é algo que seja habitual... É mesmo bastante... irregular, não é? (risos) Mas o facto de não haver letra permitiu-nos usar o tema para uma certa caraterística do jogo.

Iwata Asks
Sakaguchi:

Pudemos usar canções em conjunto com caraterísticas do jogo. Por exemplo, há uma parte em que perseguimos uma canção.

Uematsu:

Se alguém quiser saber mais sobre essa caraterística misteriosa, recomendo que compre o jogo e verifique por si mesmo! (risos)

Sakaguchi:

Posso perguntar uma coisa? Na canção final, há uma mudança de tom10, não há? Depois, quando se espera que comece o grande auge, de súbito a música torna-se bastante tranquila, não é? 10 Uma mudança de tom ou modulação acontece quando o tom passa, por exemplo, de sustenido a bemol. É usado com frequência pouco antes do momento alto de uma música.

Uematsu:

Sim, tens razão.

Sakaguchi:

Qual é a ideia? Foi uma espécie de mensagem que me querias transmitir? (risos)

Uematsu:

Parece que foi muito eficaz, não foi? (risos)

Sakaguchi:

Ah! Apanhaste-me com essa! (risos) Quando o tom muda, normalmente esperamos que crie um crescendo, mas na verdade torna-se mais tranquila... Senti que me querias enviar uma mensagem, por isso queria mesmo perguntar-te. (risos)

Uematsu:

Bom, afinal, rejeitaste o meu primeiro esforço e obrigaste-me a fazer tudo do princípio! (risos)

Sakaguchi:

(baixinho) Peço imensa desculpa... Mas tive de reescrever a letra, não tive?

Uematsu:

Sim, obrigado por isso! (risos) Mas isso não muda o facto de a canção ter sido rejeitada... (dito com um suspiro)

Sakaguchi:

(insistentemente) O teu primeiro esforço também foi bom, tu sabes isso!

Iwata:

Mas rejeitaste-o! (risos) Bom, não tenho dúvidas de que os leitores desta entrevista estarão ansiosos por ouvir a canção de que falam.

Uematsu:

Bom, se quiserem ouvir a canção, têm de terminar o jogo... (risos)