8. O prazer das fronteiras ambíguas

Itoi:

Acho que de agora em diante, as coisas que tenham “3D” no nome vão mudar. Vamos ter de reformar a palavra e o nosso conceito de 3D. Isso é válido tanto para criadores como para jogadores.

Iwata:

Também acho que sim.

Itoi:

Por exemplo, quando me mostraste a Nintendo 3DS, fiquei admiradíssimo mas agora que estou mais inteirado em relação ao produto, hoje foi mais interessante. Talvez seja porque, embora seja o mesmo 3D, o contexto, tal como era, é diferente.

Iwata:

Quando conheces o historial consegues apreciá-lo mais.

Itoi:

Certo. Se as palavras inglesas “thank you” são uma língua estrangeira para alguém, nada mais são do que sons estranhos. Mas quando sabes o que significam na tua própria língua, são muito mais interessantes. Em vez de expandir o teu conhecimento, experimentar mesmo o 3D torna o conceito muito mais real.

Iwata Asks
Iwata:

Compreendo.

Itoi:

Para pegar num exemplo totalmente diferente, todos os funcionários da minha empresa praticaram recentemente passos de dança.

Miyamoto:

Passos de dança?

Itoi:

Fomos todos a um estúdio e praticámos passos com Papaya Suzuki (uma celebridade conhecida pela sua dança e pela sua cabeleira afro) durante horas. Foi divertido. Não sabíamos dançar pelo que os passos de dança eram como palavras de um idioma que desconhecíamos.

Miyamoto:

Ah estou a ver! (risos)

Itoi:

Não tínhamos aprendido essa palavra com os nossos corpos, então, inicialmente não conseguíamos fazer esses passos lá muito bem. Não nos sentíamos bem.

Iwata:

Normalmente não fazem passos no vosso dia-a-dia e não tinham dedicado muito tempo nem muitos esforços a isso.

Itoi:

Certo. Mas Papaya-san começou pelo básico, e quando fomos melhorando, tornou-se divertido. Os seres humanos gostam de se mexer, para além do prazer de qualquer habilidade adquirida.

Iwata:

Li o que escreveste sobre isso. Quando o li pensei que deve ser ótimo poder girar daquela forma.

Itoi:

Certo? Quando o fazes, sentes-te mesmo bem. Acho que toda a gente deveria praticar estes passos!

Miyamoto:

(risos)

Itoi:

Ainda estou a tentar determinar isto, mas quando praticava estes passos pensava que aquilo também era linguagem. Falei com Papaya-san acerca disso, e foi interessante ouvi-lo dizer que não sabe escrever...que é o equivalente a eu não saber dançar. Ensinamos uns aos outros os nossos talentos respetivos, dizendo: “Se fizeres isto assim, vai-te sair bem.”

Iwata:

Estou a ver.

Itoi:

Quando lhe expliquei a escrita, como uma espécie de jogo, disse: “Se pensares nas coisas nesta ordem, com isto a seguir a isto, a escrita sairá assim.”. E pensei que deveria ser o mesmo com a dança.

Iwata:

OK.

Itoi:

Quando usas algo que já conheces, torna-se um lugar-comum e desinteressante, então mudas a cor ou dás-lhe um novo toque. Para alguém que não sabe disso, é como se fosse uma língua diferente e acho que as três dimensões apresentadas pela Nintendo 3DS têm essa qualidade.

Iwata:

Sim. É por isso que o desafio que enfrentamos agora é apresentar este novo entretenimento, saber como o transmitir devidamente às pessoas.

Itoi:

Sim, é.

Iwata:

As pessoas existem num mundo 3D real, por isso veem 3D real todos os dias. Mas por alguma razão, é agradável quando o 3D aparece num ecrã. Quando usas uma câmara 3D, há algo no 3D real que tem uma profundidade estranha no visor do cristal líquido. E a realidade está do outro lado. No entanto, esse efeito estereoscópico no ecrã é estranhamente agradável. Porque será?

Iwata Asks
Itoi:

Sim.

Iwata:

Tenho andado a pensar que se o conseguíssemos exprimir por palavras, poderíamos explicar o interesse da Nintendo 3DS.

Itoi:

As fronteiras ambíguas são a chave. Podes aplicar isto a tudo, como palavras virtuais que fazem uso do poder da tua imaginação. Penso que o mundo ambíguo é como o mundo do “além”. Vivemos neste mundo que achamos que é o real, então se algo do outro mundo entra aqui, este mundo fica instável. Umas vezes isto é assustador, outras é emocionante.

Iwata:

Ah, as fronteiras esbatem-se. E só podemos sentir-nos confortáveis e relaxados quando existem fronteiras definidas.

Itoi:

Pois. Há muito que as pessoas existem num mundo instável. Por exemplo, para as pessoas do tempo de Tale of Genji os fantasmas existiam mesmo… (Nota do editor: Tale of Genji é uma obra literária japonesa clássica do século 11.)

Iwata:

Uh-huh.

Itoi:

Mas talvez não seja adequado falar sobre isso aqui.

Iwata:

Não, é interessante. (risos)

Itoi:

Takaaki Yoshimoto24 diz que, há muito tempo, as coisas eram compreendidas de forma menos clara, e que muitas coisas não estavam bem delineadas. Em relação a questões como se os deuses ou os fantasmas existiram, nunca nos conseguiremos identificar com antepassados enquanto continuarmos a pensar de forma moderna. Disse que deviam ter existido numa estrutura de pensamento mais ambígua. Por exemplo, se caminhas na rua à noite e tens a sensação de que alguém te está a seguir, alguém dos dias de hoje poderia pensar que era tudo imaginação, mas as pessoas do período Heian não estavam tão seguras disso. (Nota do editor: o período Heian é um período na história do Japão que ocorreu entre 794 e 1185.) 24Takaaki Yoshimoto: Um poeta, pensador e crítico literário.

Iwata:

Estou a ver. Não era claro.

Itoi:

Se pensasses que tinhas visto algo, poderias pensar que era um fantasma e, claro, poderias pensar só que seria a tua imaginação. Há muito tempo, existia mais uma espécie de gradação dessas coisas. Acho que existia mais tráfego entre este mundo e o do “além”. Como resquício das mentalidades desses tempos, esse sentimento de ambiguidade permanece essencialmente e, independentemente do tempo, as pessoas aplaudem as pessoas e as coisas que nos mostram a ambiguidade das fronteiras. Como a arte antes de a perspetiva ter sido dominada ou como os fantasmas que aparecem em histórias como se isso não fosse nada de especial.

Iwata Asks
Iwata:

Uh-huh.

Itoi:

Quando alguém como Shigeru Mizuki representa aquela visão terrível do mundo face aos conhecimentos científicos que temos, conseguimos interessar-nos. Penso que o 3D misterioso que a Nintendo 3DS nos permite experienciar ensina-nos, ou melhor, lembra-nos, a ambiguidade das fronteiras, lembra-nos de como é interessante a interação entre os mundos. (Nota do editor: Shigeru Mizuki é um autor japonês famoso pela sua banda desenhada de terror.)

Iwata:

Estou a ver.

Itoi:

Isso não é nada de particularmente especial. A estrutura dupla de Avatar é assim, e O Sexto Sentido e Poppoya são assim. Esse é um elemento fulcral do entretenimento, e nestes últimos anos, o número de obras que o contém aumentou, e este género é agora alvo de cada vez mais adesão. Para mencionar mais uma área de pensamento, penso que uma das razões pelas quais estas obras aumentam de ano para ano é que os campos académicos na ciência moderna que lidam com a epistemologia ainda são recentes e não estão totalmente estabelecidos. Toda a gente tem uma relutância quase física em seguir esse caminho. É interessante pensar que as pessoas estão a tentar capturar de novo essa ambiguidade que tende a desaparecer. (Nota do editor: Poppoya é um romance famoso e um filme no Japão. Tal como nos filmes americanos “Avatar” e "O sexto Sentido", o protagonista vive experiências invulgares que se baseiam no caráter obscuro que a fronteira entre o mundo real e “outro mundo” adquire.)

Iwata:

Essa confusão do passado persiste na fronteira entre o mundo real e o que está dentro do ecrã.

Itoi:

Sim. Consegues sentir isso, o que te dá um prazer peculiar. Por exemplo, as fronteiras entre ficção e não-ficção e entre fantasia e documentário já foram vagas.

Iwata:

Hmm, pode ser exatamente isso que estamos a tentar dar às pessoas. Mostrei-te isto brevemente antes, mas os jogos RA25 na própria Nintendo 3DS são interessantes pela forma como misturam realidade e espaço virtual. 25Jogos RA: Este software na consola Nintendo 3DS lê cartões de realidade aumentada (Cartões RA), o que permite aos jogadores desfrutarem de jogos que estendem elementos virtuais até ao espaço real.

Itoi:

Sim, exatamente. Isto é verdadeiramente fantástico! (risos)

Iwata Asks
Miyamoto:

O StreetPass também proporciona esse prazer de obscurecer fronteiras.

Itoi:

Verdade.

Miyamoto:

Se não fizeres nada, o jogo estará completo em si mesmo, mas se passares no mundo real, o resultado aparece no jogo, o que é misterioso e interessante. Também é interessante ver como, embora a rede seja tão dispersa, se os utilizadores não passarem mesmo uns pelos outros, nada acontecerá. Poderemos estar a remar contra tendências atuais, mas indo ao encontro do que Itoi-san disse, seria bom se a experiência vulgar de comunicação entre pessoas através de encontros se expandisse até ao entretenimento.

Itoi:

Certo.

Iwata:

Possui uma emoção especial na medida em que encontras alguém, o que nunca aconteceria se não fosses àquele sítio específico. Com a Internet é ao contrário pois ela faz com que seja fácil ligares-te a qualquer pessoa mesmo que esteja do outro lado do mundo.

Miyamoto:

Certo. As crianças poderão pedir a um pai que vá a uma viagem de negócios em Tóquio para levar consigo a sua Nintendo 3DS.

Iwata:

Quando o pai voltasse, diria: “Passei pelas pessoas de Tóquio.” (risos)

Miyamoto:

Ele diria: “Tóquio é mesmo qualquer coisa de espetacular!” (risos)

Itoi:

Esse tipo de experiência real é ótimo. E, pondo agora os videojogos de parte, consegues ver esse burburinho no Twitter.

Miyamoto:

Oh...

Itoi:

Por exemplo, quando fui a Boston, não há muito tempo, alguns estudantes universitários de lá publicaram no Twitter que queriam conhecer-me. Eu disse que não havia problema e conheci-os.

Iwata:

Deu-se logo ali um encontro único.

Itoi:

Certo. Nenhuma rede até aqui tinha conseguido isto. Depois, comuniquei com muitas outras pessoas e agora parece que irei ao Butão este ano. Isso também começou como uma simples troca de palavras no Twitter. Esse tipo de comunicação é muito semelhante ao StreetPass.