Em que outras coisas se baseiam os teus valores, para além da tua experiência no estrangeiro?
A Capcom tinha um jogo muito popular chamado Onimusha19 que vendeu bem a nível mundial. Na altura, o filme Gladiador20 tinha acabado de ganhar um Óscar e achámos que produtos de temática histórica iriam vender sem problemas. Foi nessa altura que criei um jogo chamado Shadow of Rome.21 O resultado... foi horrível. O motivo para esta falha foi o facto de eu não ver a realidade na altura. 19 Onimusha: Jogo de ação de sobrevivência sobre o período Sengoku (Estados em Guerra) no Japão. O primeiro jogo da série foi lançado pela Capcom Co., Ltd. em 2001. 20 Gladiador: Filme de 2000 produzido nos EUA com realização de Ridley Scott. 21 Shadow of Rome: Jogo de ação e aventura lançado pela Capcom Co., Ltd. em 2005.
Queres dizer que tinhas uma perspetiva tendenciosa?
Quero dizer que tudo se deveu a uma convicção falaciosa de que tudo o que tivesse a ver com história venderia. Por exemplo, consegue-se mostrar muita ação num filme de duas horas. Mas quando perguntei se os americanos sabiam alguma coisa sobre a história de Roma antiga, a minha impressão foi a de que, a menos que visitassem Roma enquanto turistas, não sentiam necessariamente qualquer vontade de compreender a história romana em detalhe. E quanto aos italianos, a minha impressão foi a de que poderiam não ver César como alguém extraordinário, ao contrário do que os japoneses pudessem pensar. Talvez pudessem dizer apenas “Quem, César? Sim, sei quem é.” Por outras palavras, os asiáticos podem ter as suas próprias ideias no que diz respeito à compreensão de períodos históricos (como por exemplo, que pessoas eram figuras notáveis), mas os residentes locais têm muitas vezes ideias COMPLETAMENTE diferentes das nossas.
Não há mais ninguém como Shiono-san22 por lá? 22 Nanami Shiono: Romancista japonês residente em Itália cujo trabalho mais notável é Res Gestae Populi Romani.
Não me parece. É por isso que até os romances de Shiono-san iriam pôr as pessoas locais a dizer: “Ai sim? Então foi isso que aconteceu?” É por isso que a parcialidade de “um jogo histórico sobre o famoso Império Romano irá vender de certeza” era algo em que nem sequer pensava conscientemente. Na altura, muito possivelmente metia a Europa e os Estados Unidos no mesmo saco, não os compreendendo completamente. Foi isto que me levou a pensar que precisava de conhecer mais profundamente a realidade.
Portanto, depois dessa experiência embaraçosa, solidificaram-se os valores que tens hoje.
É verdade e estou a falar a sério. Foi embaraçoso porque estava plenamente convencido de que ia resultar como eu tinha pensado. Refleti sobre os meus erros e tentei compreendê-los melhor. O resultado foi o jogo Dead Rising.23 Eu e a equipa de Shadow of Rome analisámos os Estados Unidos e percebemos que tipo de jogos se gostava mais por lá, podendo ser absorvidos pela cultura. Depois de reunirmos tudo desse tipo, conseguimos obter um bom resultado. Mas foi só depois dessa experiência, daquele embaraço e daquele enorme falhanço, que consegui compreender tudo isto. 23 Dead Rising: Jogo de ação lançado pela Capcom Co., Ltd. em setembro de 2006.
Estou a ver.
Foi por isso que, quando decidimos fazer renascer Street Fighter mais uma vez, estava determinado a não cair no mesmo erro. Olhei para trás e tentei lembrar-me do que me impressionou nos anos noventa. Tinha de me recordar como as pessoas se sentiram na altura e foi assim que criei os títulos, um a um.
Já se passaram nove anos desde o último lançamento da série. Como é que começou exatamente este novo Street Fighter?
Em entrevistas sobre outro título no estrangeiro, quase toda a gente me perguntava no final: “E para quando uma sequela de Street Fighter?” Perguntavam-me isso imensas vezes. O motivo pelo qual achei que a série tinha acabado depois de Street Fighter III24 refletia o mesmo erro que cometi em Shadow of Rome: só tinha considerado os consumidores que eram fãs incondicionais da série. 24 Street Fighter III: Lançado pela primeira vez nos salões de jogos arcade pela Capcom Co., Ltd. em 1997 e subsequentemente lançado para consolas domésticas.
Mas esses eram os fãs mais ferrenhos.
Pois eram. Eram também as pessoas que mais faziam as suas vozes serem ouvidas. Eu compreendia como se sentiam e achei que as vozes delas eram tudo. Mas não me apercebi que havia outras pessoas que só tinham descoberto o jogo quatro ou cinco anos antes.
Se não fosse aquele falhanço que mencionaste, se calhar nem te terias apercebido disso.
Pois não. Apercebi-me de que havia quem estivesse à espera da sequela. Decidi reformular a série dos pés à cabeça.
Todas as séries de jogos têm uma certa tradição ou hábito que seguem. À medida que a série progride, pode tornar-se mais refinada e avançada. Mas, ao mesmo tempo, há algo que se perde no processo. Nesse sentido, o que achas que Street Fighter perdeu?
Penso que foi o estreitamento dos “caminhos”. Tínhamos trancado as portas da “entrada” sem nos apercebermos disso.
Foi mesmo algo que fizeram inconscientemente?
Penso que sim. Ao definir a “entrada”, acabámos por tornar o título num jogo de elite.
Mas aqueles poucos que podiam entrar devem ter ficado orgulhosos e devem ter adorado o espaço.
Claro. De certo modo, era bom sentir fazer parte de um grupo exclusivo. Nós, criadores de jogos, também ficámos inebriados com esse sentimento. Felizmente, mesmo 14 anos depois do seu lançamento, continua a haver torneios de Street Fighter III!
Espetacular! Quem entra nos torneios já deve ser perito.
E por isso é que, quando criámos Street Fighter IV, sabíamos que não devíamos fazer algo que só Master Habu25 conseguisse jogar. Já existe um Torneio Ryuo26, portanto não há necessidade de fazermos outro. 25 Master Habu: Nome completo Yoshiharu Habu. Jogador profissional de shogi (xadrez japonês). 26 Torneio Ryuo: Torneio de shogi (xadrez japonês) organizado pelo jornal Yomiuri Shimbun que determina que o vencedor do Torneio Ryuo seja considerado o melhor jogador profissional de shogi.
Por outras palavras, os criadores devem alargar os caminhos e permitir que outras pessoas vejam o quão divertido é estar entre os “escolhidos”. Portanto, o que estás a querer dizer é que o projeto de renascimento de Street Fighter começou contigo a pensar em formas de alcançar este objetivo.
Exatamente. Para dizer a verdade, quando começámos a fazer o Street Fighter IV, houve quem sugerisse exagerá-lo ainda mais.
Só os comentários dos fãs incondicionais da série levaram-vos naturalmente a considerar tal coisa.
Como não podemos equacionar a voz da pessoa mais barulhenta com a opinião de toda a gente, decidimos voltar às raízes das pessoas que jogavam Street Fighter e tentámos analisá-las. Quando estamos a fazer um jogo, digo sempre à minha equipa para nunca se esquecer de “voltar às origens” e para nunca se esquecer do “encontro de alunos”. Voltar às origens significa estudar bem o início dos inícios, onde tudo começou. O encontro de alunos significa pensar como podemos fazer com que os antigos jogadores que gostaram da jogabilidade do título original queiram voltar a jogar. Por exemplo, quando vais a um encontro de alunos da escola secundária, pensas logo na miúda de quem gostavas na altura. (risos)
(risos)
A caminho do encontro, começas a pensar como é que ela estará agora. Mas depois, quando lá chegas, as pessoas mudaram tanto que já nem sabes qual delas é. Algo deste género. (risos) Se fosse eu, imaginava mil e uma coisas sobre a rapariga a caminho do encontro.
Expandirias as tuas ideias sobre como a rapariga está depois de tantos anos? (risos)
Sim, tal e qual. As pessoas que jogaram Street Fighter até os dedos ficarem doridos nos anos 90 carregam junto ao coração uma imagem desses tempos. Não podemos reutilizar o que utilizámos na altura da mesma forma, mas devemos organizar um encontro de alunos feliz que todos os participantes possam imaginar. É este o Street Fighter IV que eu queria fazer.
Então em vez de voltar a experienciar o que se fez no passado, querias extrair apenas as coisas boas e as boas imagens.
Exato. Queria que as pessoas pudessem dizer “Não mudou nada”, mas no bom sentido. E tentámos criar uma entrada larga que “voltasse às origens” ao analisar porque é que tantas pessoas no passado quiseram jogar o original. Creio que tentar desenvolver estas partes foi o que motivou o renascimento do jogo.
Não foi complicado fazer com que o resto da empresa compreendesse e acreditasse nisso?
Foi muito complicado. Há cinco anos, andava eu a chorar pelos cantos. Foram precisos dois anos para convencer a empresa! Só me diziam: “Isso está fora de moda.”
E foi apenas quando os consumidores experimentaram o jogo que sentiste uma resposta sólida pela primeira vez?
Na verdade, foi quando o anunciámos. Lá para outubro de 2007, lançámos um teaser que anunciava o renascimento do jogo. As reações foram fortíssimas. Depois disso, sabia que a direção que tínhamos tomado afinal não estava errada. Quando pusemos a versão arcade na Exposição de Jogos, sempre que alguém começava a jogar dizia: “Estou tão contente por não ter mudado!”
A impressão que deixa ao consumidor é que não mudou nada, mas na verdade alteraram imensos detalhes.
As pessoas que jogavam esporadicamente diziam que não tinha mudado. Por outro lado, as pessoas que jogavam religiosamente o jogo sentiam que tinha percorrido um longo caminho para chegar até aqui. Senti que apresentar ambas as características era a forma de alargar o ponto de entrada. Na altura, disse para mim mesmo: “Afinal tinha razão!” Afastou-me do passeio da vergonha.
Depois disso, o jogo foi transferido para as consolas domésticas. Como já era popular, foi uma caminhada fácil a partir daqui?
Sim. Logo quando lançámos a versão arcade, até as pessoas das outras subsidiárias disseram: “Vamos a isso.” Senti que este título tinha tudo a seu favor.
A população de jogos de luta decresceu significativamente a determinada altura, mas fiquei muito surpreendido por esse título vender tão bem para uma consola HD. Não parava de me perguntar como é que tinham conseguido. Já me sinto melhor, agora que o mistério foi desvendado. (risos)
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